Preâmbulo
Tenho o hábito de ler blogs, bons blogs, diga-se de passagem. Talvez, por isso, decidi alimentar um também há 11 anos. Há seis meses que não postava um texto. Não sei explicar, exatamente, o motivo deste desleixo ou silêncio. A Arte consegue me silenciar por um tempo considerável, quando me sinto arrebatada por ela. Viajei para a Europa em 1º de agosto de 2021. Retornei de Lisboa no dia 8 de setembro e, daí, passei uma semana em São Paulo, visitando mostras, com um especial destaque para a 34ª Bienal de Arte de São Paulo. Tudo o que visitei em Portugal somado ao que eu conferi em São Paulo deixaram-me em um estado taciturno. Eu havia escrito um rascunho sobre as telas do artista indígena Jaider Esbell, da etnia macuxi, que sorvi avidamente no terceiro andar do pavilhão; a notícia de seu suicídio, todavia, quase dois meses depois de minha visita à Bienal de SP, deixou-me pouco à vontade para finalizar o meu comentário, além de muito triste.
Primeiro Ato
Em outubro de 2021, foi inaugurada na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, a primeira mostra individual do artista plástico Lucas Arruda, paulistano nascido em 1983. Deixei para conferi-la nos últimos dias da temporada. Estive na Fundação Iberê Camargo Fundação em uma tarde quente de janeiro de 2022. Eu havia lido sobre a obra de Arruda, através da leitura de blogs, de sites de galerias internacionais, de galerias online e de alguns esparsos textos em Português. Pelo que entendi, as telas de Lucas Arruda são reconhecidas e apreciadas no mercado de arte do exterior; entretanto, ele ainda é pouco conhecido dos brasileiros. Portanto, entre a primeira quinzena de setembro de 2021 e a primeira de janeiro de 2022, passaram-se quatro meses. Já em Porto Alegre, eu havia visitado as mostras do Museu de Arte do Rio Grande do Sul e da Casa de Cultura Mario Quintana neste interregno. Ontem, dia 30 de janeiro de 2022, conferi as peças de Sírio Braz, um artista pernambucano que vive em São Paulo e que trouxe algumas obras de seu acervo pessoal e da coleção particular de Carlos Trevi à Fundação Ecarta em uma mostra intitulada Casa Brasileira com curadoria de André Venzon (muito lindas suas peças! Ficarão expostas até março). Senti-me, pois, mais preparada e estimulada hoje, esteticamente, para escrever sobre o que vi nas telas de Lucas Arruda.
Segundo Ato
A mostra "Lugar sem Lugar", de Lucas Arruda, inaugurada no início de outubro de 2021, na Fundação Iberê Camargo, teve como curadora Lilian Tone, quem assina o texto de abertura da exposição (divulgado no formato de artigo no jornal Correio do Povo e publicado em 2 de outubro). Nesse texto, a curadora destaca a "incansável experimentação pictórica de suas pinturas", que abrangem 14 anos de trabalho, desde as obras iniciais até o ano de 2021, inclusive criações em outros suportes como instalação de luz e vídeo.
Li há alguns anos sobre a pintura de Arruda. No blog da Brazilian Contemporary Art, encontra-se uma observação estética interessante, que alude à tradição pictórica do Ocidente, sugerindo ao leitor e apreciador das telas do artista paulistano que "his paintings represent timeless landscapes wich could remind the renowed artistic works by Romantic Painter such as Capar David Friedrich and William Turner" (Ken Johnson, 2016. In: www.braziliancontemporaryart.altervista.org). Em outras palavras, suas telas representam paisagens atemporais, não localizáveis geograficamente, mas que evocariam memórias de uma intensidade emocional, que poderiam lembrar os pintores românticos como o alemão Caspar David Friedrich (1774-1840) e o britânico William Turner (1775-1851).
Diante do exposto, eu já havia engendrado um grau de expectativa para a visitação das telas de Arruda, dado o fato de que conheço a 'Turner Collection' da Tate Britain, em Londres, e visitei três vezes a sala dedicada ao pintor Caspar David Friedrich na Hamburg Kunsthalle, em Hamburgo. No repertório pictórico de Friedrich, há ruínas, brumas, paisagens invernais e montanhas, uma estética situada no bojo do movimento do Romantismo Alemão, cujo quartel-general era Dresden, no final do século XVIII. Urgia, naquele momento histórico, plasmar uma identidade, genuinamente, germânica por conta das guerras napoleônicas, que devastavam a Europa.
Em referência à obra do pintor Turner, foi a arte sobre papel, a aquarela e o desenho, que contribuíram para que ele configurasse sobremaneira suas telas a óleo e entregasse ao público algumas imagens com uma grande carga cósmica plasmadas por turbilhões de luz. Como professor, William Turner lutou para que a pintura de paisagem adquirisse um status mais elevado dentro do cânone da pintura ocidental. Schopenhauer, em sua Estética, no livro III de O mundo como vontade e representação (1818/1819), não categoriza a pintura de paisagem; analisa a produção das pinturas históricas e de animais. Todavia, dimensiona o belo natural junto ao belo artístico. Quem flui o belo é o "olho cósmico", afirma Schopenhauer, não importando aqui o lugar do qual se contempla, tampouco a classe social do fruidor. Ele comenta as pinturas paisagísticas dos neerlandeses, mas as considera "extremamente insignificantes" (BARBOSA, J. Os pintores de Nietzsche e Schopenhauer. Cadernos Nietzsche, n. 31, 2012).
Terceiro ato
Assim, considerar a pintura de Lucas Arruda como um expoente do Romantismo, uma releitura do Romantismo clássico ou uma prática que emula a estética do Romantismo, no meu entender, é empobrecer sua experimentação. Essa tensiona-se na volatilidade do Figurativo e da Abstração, ao passo que as pinturas românticas eram, majoritariamente, norteadas pelo Figurativo e desconheciam os suportes utilizados pela contemporaneidade.
O apreciador das telas de Arruda pode, sim, se entronizar como parte da obra, na medida em que ressignifica a luz abundante da composição e faz com que qualquer ponto de apoio, como uma linha no horizonte ou um cromatismo na parte superior, se dissipe e se reconstrua de acordo com sua subjetividade, suas memórias e sua carga emocional.
Movimentei minhas mãos, suavemente, diante das telas de dimensão reduzida de Arruda. Eu ri. Parecia que luz estava se deslocava, simulando que o limite da tela e o suporte também continham parte da composição pictórica. Esse jogo de ilusão, distinto daquele do Barroco, sob a expressão de novos suportes e veículos, afeitos ao século XXI, fazem de Lucas Arruda um artista que sabe de seu lugar de criação, que já orou no jazigo da tradição romântica da pintura de paisagem (embora conheça o defunto e sua causa mortis) e, tendo em vista a segunda mostra paralela, de obras tardias de Iberê Camargo, curada por ele (Lucas Arruda), denota-se o quanto as guaches e desenhos de Iberê também influenciaram sua poética, marcada por um tipo de fantasmagoria, que só os que conhecem a Fundação Iberê Camargo, desde a sua abertura, e acompanham as várias fases do artista homônimo, podem compreender. Muito lindo o teu trabalho, Lucas Arruda, visceral e necessário!