No post anterior (abaixo), comentei o longa de Q. Tarantino, o "Django livre" (2012), e estabeleci uma interconexão entre os dois roteiros. O primeiro transforma o lendário Django em um negro, escravo livre no Sul dos EUA. O tema de fundo é a escravidão negra. No segundo longa, "Lincoln" (2012), de Steven Spielberg, com o soberbo Daniel Day-Lewis ("Meu pé esquerdo" e "Sangue negro") no papel principal, o tema de fundo é também a escravidão negra, associada às contradições entre o Norte industrializado e o Sul agrário; indo mais além, retrata a constituição dos Estados Confederados, que se rebelaram contra a União e protagonizaram a Guerra de Secessão nos EUA, entre 1861 e 1865, ano em que, já em seu segundo mandato, Lincoln é assassinado. O filme é bastante intimista e desenha um presidente sensível, envergonhado com a escravidão no Sul, de posse de uma escuta fina ao ouvir as queixas de soldados e cabos negros, no front da Guerra Civil e, sobretudo, habilidoso nas manobras políticas para obter os votos suficientes à aprovação e sanção da Emenda Constitucional 13, que emancipava os negros no país (havia quatro milhões deles na época). Notei que várias pessoas se retiraram da sala, ao longo da projeção, especialmente jovens. Para aquele que desconhece a História dos EUA e o problema da escravidão negra, o filme pode ser mesmo enfadonho, ainda que o brilho da atuação de Daniel Day-Lewis, Sally Field e Tommy Lee Jones seja inatacável. Uma vez, quando Gore Vidal ainda era vivo, ele concedeu uma entrevista em sua casa no litoral de Salerno, Itália, e comentou com um jornalista, não me recordo quem, que o presidente norteamericano Hoover, no poder durante a Grande Depressão, iniciada com a crise na agricultura dos EUA e com o crack na bolsa de valores de Chicago, em 1929, deixara escapar que o que faltava para o país naquele momento era um grande poeta. Lincoln teve, no período em que governou, negociando o fim da escravidão negra e a rendição dos estados confederados sulistas, que mantinham suas forças contra o contingente militar da União, um grande escritor como representante da voz da América, talvez o maior deles em língua inglesa, com sua força poética: "Leaves of Grass" (Folhas da relva), de Walt Whitman, publicado em 1855. Passados 158 anos do lançamento desse livro de poemas em prosa, em um momento pré-Guerra Civil norteamericana, dei-me conta de que não houve, no longa de Spielberg, um resgate do monumento literário de Whitman, o que teria sido um ganho para o roteiro. Também nada sobre o livro abolicionista "A cabana do Pai Tomás", de Harriet Stowe, publicado entre 1851 e 1852. A seguir, deixo aos leitores uma tradução de um poema de Whitman para o Português, do poeta e tradutor Adriano Scandolara, de Curitiba, meu amigo querido, publicado no blog literário "Escamandro":
Escuto a América a cantar
Escuto a América a cantar, as várias canções que escuto;
O cantar dos mecânicos – cada um com sua canção, como deve ser, forte e contente;
O carpinteiro cantando a sua, enquanto mede a tábua ou viga,
O pedreiro cantando a sua, enquanto se prepara para o trabalho ou termina o trabalho;
O barqueiro cantando o que pertence a ele em seu barco – o assistente cantando no deque do navio a vapor;
O sapateiro cantando sentado em seu banco – o chapeleiro cantando de pé;
O cantar do lenhador – o jovem lavrador, em seu rumo pela manhã, ou no intervalo do almoço, ou ao por-do-sol;
O delicioso cantar da mãe – ou da jovem esposa ao trabalho – ou da menina costurando ou lavando – cada uma cantando o que lhe pertence, e a ninguém mais;
O dia, ao que pertence ao dia – De noite, o grupo de jovens, robustos, amigáveis,
Cantando, de bocas abertas, suas fortes melodiosas canções.
I Hear America Singing
I hear America singing, the varied carols I hear;
Those of mechanics—each one singing his, as it should be, blithe and strong;
The carpenter singing his, as he measures his plank or beam,
The mason singing his, as he makes ready for work, or leaves off work;
The boatman singing what belongs to him in his boat—the deckhand singing on the steamboat deck;
The shoemaker singing as he sits on his bench—the hatter singing as he stands;
The wood-cutter’s song—the ploughboy’s, on his way in the morning, or at the noon intermission, or at sundown;
The delicious singing of the mother—or of the young wife at work—or of the girl sewing or washing—Each singing what belongs to her, and to none else;
The day what belongs to the day—At night, the party of young fellows, robust, friendly,
Singing, with open mouths, their strong melodious songs.