Não comentei nada neste blog quando o cineasta italiano Vittorio Taviani faleceu em abril. No entanto, ontem, desapareceu o grande cineasta Bernardo Bertolucci, aos 77 anos, um artista politizado e obsessivo contra o fascismo. Bertolucci foi velado na Câmara Municipal de Roma hoje, dia 27 de novembro de 2018. Ontem e hoje, revi dois de seus filmes: "Novecentos", de 1976, e "O céu que nos protege", de 1990. Também aprecio "O último tango em Paris", de 1972; "La luna", de 1979; "O último imperador", de 1987 (que arrebatou nove prêmios Oscar); "O pequeno Buda", de 1993; "Beleza roubada", de 1996; e "Os sonhadores", de 2003. Há outros filmes que compõem a cinematografia de Bertolucci, mas não tive a sorte de assisti-los. Quem sabe, nos próximos meses, algumas mostras e festivais de seus primeiros filmes sejam ofertados ao público em geral e aos cinéfilos.
De todos esses longas, o que mais me toca, particularmente, e voltou a me perturbar quando o reassisti, é "O céu que nos protege" (The Sheltering Sky), uma produção ítalo-britânica, com John Malkovich e Debra Winger, apresentando locações no Marrocos, que se iniciam em Tânger, passam pelo Deserto do Saara, chegam a um povoado de tuaregues (não são árabes, são tribos que pertencem ao povo bérbere. São conhecidos como imuagues, expressão que significa "homens livres") e retornam a Tânger na cena final. O roteiro foi concebido por Bertolucci e Mark Peploe, a partir do livro homônimo de Paul Bowles (1910-1999), escritor que passou quase toda a sua vida em Tânger, tendo lançado seu livro em 1949, no pós-guerra.
Ainda não finalizei o elenco de fatores que torna o filme "O céu que nos protege" especial para mim. Há a trilha sonora que é fascinante, produzida por Ryuichi Sakamoto, e temas de Richard Horowitz. Esse compositor já havia lançado em 1987 um trabalho em que propõe uma dialética interessante entre a música ocidental e a oriental. O título do álbum é "Desert Equations". Basta procurar no You Tube para conferi-lo.
Como minha área de estudo sempre foi a Estética (da Filosofia), não poderia deixar de comentar aqui o que captei do projeto estético de Bertolucci para esse filme. A fotografia é magnífica; a luz que se derrama sobre os enquadramentos é de emocionar, notadamente, inspirada em obras de arte do período romântico do século XVIII.
O casal constituído por Malkovich e Winger desembarca com uma terceira pessoa em Tânger. Vê-se muitos baús, caixas e maletas do trio de viajantes. Na cena de chegada, há uma conversa muito interessante sobre a diferença entre um turista e um viajante. O casal autointitula-se 'viajante', aquele que viaja e pode, simplesmente, nunca mais regressar à sua casa. O turista é aquele que mal chega ao seu destino e já aguarda o regresso à sua casa. Na verdade, o filme desvela uma viagem sem volta [tentando evitar um spoiler!].
A construção da estética do filme passa pela contemplação de obras de alguns artistas, que também pintaram o viajar, o deparar-se com uma nova realidade e a representação da fruição desencadeada no observador. Várias das cenas do filme, não obstante ocorridas no deserto, lembraram-me a obra de Caspar David Friedrich (1774-1840). Suas telas estão em uma sala especial na Kunsthalle, de Hamburgo. Estive lá três vezes, ao longo dos últimos anos, para rever a obra do pintor alemão. A mais conhecida, muito associada às caminhadas que Nietzsche fazia nas montanhas próximas ao lago Sils, na Suíça, intitula-se "O viajante sobre o mar de névoa", de 1818. A seguir,
deixo uma foto de um postal, que carrego comigo como marcador de livro. É esta a tela de Friedrich a que me referi:
A paleta de cores do filme, trabalhada por Vittorio Storaro, também remete-nos à luz das telas de William Turner, que se encontram em uma sala da Tate Modern, em Londres, conhecida como Turner Collection.
Enfim, minha homenagem ao cineasta Bernardo Bertolucci é modesta, mas pletórica de reflexão e de conexões com a arte, com a matéria-prima do viajar, com a dialética da liberdade/confinamento, a que a protagonista se permite, com o exercício de alteridade, com a desertificação das relações humanas e, sobretudo, com o problema da transitoriedade da vida.
Convido vocês, meus leitores, a procurarem em DVD ou no You Tube o filme perturbador "O Céu que nos protege", que, a rigor, não é um manto protetor, mas pode, sim, sufocar.
Abaixo, uma foto de uma cena, em que a protagonista se envolve com o líder dos tuaregues e viaja com ele sobre um dromedário:
(Fonte: You Tube)
(Fonte: You Tube)
Muito bem escolhido o título,os filmes de Bertulucci da década de 70 fazem parte da minha vivencia de juventude do meu tempo no Brasil.
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