Fonte: Google
Sempre que escrevo um comentário sobre um filme ou um documentário neste blog é porque fiquei impressionada e tive algum tipo de fruição estética, após o espetáculo. Não leio críticas especializadas antes de assistir a um filme, tampouco antes de me reportar ao meu blog. Portanto, esta é expressão escrita de uma visão muito particular de "Bacurau", sem pretensão alguma e sem comprometimento com qualquer escola crítica. O longa dos pernambucanos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles arrebatou o prêmio do júri no Festival de Cinema de Cannes neste ano, foi projetado em vários outros festivais e, em agosto, entrou em cartaz nas salas brasileiras. Arrebatou-me também, devo assumir!
Passei a me interessar pela música produzida em Pernambuco há muitos anos atrás e, com o filme "O som ao redor", dirigido por Kleber Mendonça Filho e lançado no país em 2013, tive uma verdadeira vontade de conhecer Recife e Olinda, em Pernambuco.
Três anos após, com "Aquarius", de 2016, e sua narrativa sofisticada, coproduzido por Walter Salles e também apresentado em Cannes, comecei a entender um pouco a urdidura cinematográfica do diretor pernambucano.
Feito o prólogo, vamos ao filme. Eu o assisti no dia 2 de setembro. Não me interessa aqui se é uma distopia, um conto sociopolítico, se tem nuanças político-partidárias etc. Meu ponto inicial é o título, que guarda simetria com o nome do pássaro bacurau (Nyctidromus albicolis. In: www.wikiaves.com.br). Esse pássaro é típico do cerrado e seu nome indígena é "A-ku-ku". Também conhecido por "Amanhã-eu-vou", em Minas Gerais, é possuidor de grandes asas, o que lhe permite caçar insetos, voando. O nome bacurau é uma onomatopeia, ou seja, é a própria vocalização que o pássaro emite. Temos aí a primeira figura de linguagem que encontrei em "Bacurau". O pássaro voa à noite para se alimentar e, durante o dia, fica camuflado na vegetação rasteira. Os locais só o veem se ele se assusta e se muda de lugar, em um voo curto.
O sentido de bacurau como "amanhã-eu-vou" também tem simetria, por sua vez, com o subtítulo do filme, que indica que o tempo da ação será localizado no futuro. A partir dessa informação, parece que só se fala em distopia no tratamento narrativo de "Bacurau". O filme é muito mais; está repleto de intertextualidades e as tais figuras de linguagem, que indiquei no título!
Após conhecermos Teresa (Barbara Colen), que retorna ao povoado para o funeral de Dona Carmelita, falecida aos 94 anos, matriarca emblemática do povoado, vamos conhecendo os outros personagens como o professor Plínio (Wilson Rabello), a médica Domingas (Sônia Braga está poderosa!) e Pacote/Acácio (Thomas Aquino). Percebemos os laços, as tensões e a identidade comunitária entre os habitantes no ritual fúnebre, além das tessituras individuais. Mais adiante, após uma série de assassinatos misteriosos, que abalam a comunidade (sem falar no caminhão-pipa, que chega à vila cravejado de tiros, o que coloca o abastecimento de água em risco), um outro personagem, não menos relevante, descortina a narrativa. Trata-se de um foragido que atende por Lunga (brilhantemente desenvolvido por Silvero Pereira, que enseja a reencarnação de Lampião), um criminoso para a Polícia, porém um protetor para os menos assistidos de Bacurau. Lungo vive escondido, com mais dois capangas fortemente armados, numa torre de uma usina desativada, próxima ao povoado. Ele é convocado a retornar a Bacurau para organizar a contra-ofensiva dos habitantes em relação a pessoas que eles sequer sabem quem são e o que desejam.
Até esse ponto do longa, o prefeito da cidade já esteve junto aos habitantes, fazendo campanha para uma possível reeleição. Deixa donativos e caixões fúnebres para os habitantes, que são ignorados. É a segunda vez que caixões são vistos em cena. No início do filme, Teresa vai chegando em Bacurau e a uns 17 quilômetros de distância encontra um caminhão de esquifes virado na estrada. Cartografando o povoado, esse estaria localizado, de modo fictício, no interior de uma cidadezinha no sertão pernambucano. No entanto, simultaneamente aos assassinatos ocorridos, inclusive de uma criança, a cidade desaparece do mapa digital, monitorado por satélite, e o sinal de celular é cortado, por ocasião da visita de dois forasteiros que chegam de moto dissimulados de trilheiros. Ela, a forasteira, coloca sob uma mesa de bar um inibidor de sinal de telefonia móvel. Todos os cidadãos ficam sem poder se comunicar entre si e são mantidos isolados, em relação ao centro da cidade. Um drone, em forma de OVNI, é visto, no mesmo período, por um dos moradores sobrevoando a região, o que causa alerta e apreensão.
A configuração espacial do povoado de Bacurau lembra a de uma aldeia indígena, aos moldes daquelas que existiram no litoral e no interior de Pernambuco, antes da chegada dos europeus. As etnias de língua tupi eram os Tupiniquins, os Tabajaras e os Caetés, esses extremamente violentos com seus inimigos. Os de língua não tupi, que adentraram o interior do estado, eram os Tapuias. Quando o prefeito de Bacurau aparece na comunidade, a atitude daquele que detém o poder político remonta aos representantes da Coroa, que concediam benefícios aos indígenas aldeados e aliados aos portugueses. Felipe Camarão foi um eminente colaborador desse tipo.
Na primeira parte do filme, pontuado por antíteses, pode-se reconhecer um certo realismo narrativo, exceto a cena de alucinação em que Teresa vê água saindo do caixão de Dona Carmelita. Na segunda metade do longa, prevalece o que poderíamos intitular de um "quase realismo mágico", um toque muito especial à carga estética do projeto. Para que a narrativa se enquadrasse, verdadeiramente, no realismo mágico, seria necessário que a percepção de tempo dos habitantes fosse cíclica, o que não ocorre em "Bacurau", uma vez que a dimensão temporal é linear.
Um último aspecto interessante, e que poderia legitimar a alegoria do conflito entre etnias indígenas e os europeus, ou entre o sistema de poder e o cangaço, é o uso de alucinógenos. No início do filme, Teresa, quando chega a Bacurau, recebe uma semente na boca, o que resulta em sua alucinação no cemitério. No momento da contra-ofensiva dos habitantes de Bacurau, todos os adultos recebem uma semente em suas bocas. Por ilação, percebe-se depois que as armas utilizadas no conflito são retiradas do Museu de Bacurau, um território simbólico que irmana os habitantes e mantém sua identidade cultural. Para a batalha hiperbólica, todos se encontram armados e sob efeito alucinógeno!
A droga, de efeito cinestésico, utilizada pelos cidadãos, no momento pré-ofensivo, pode ser a Jurema negra (Mimosa hostilis). Inicialmente, essa droga era, nas etnias da América, reservada a indivíduos com funções religiosas ou mágicas dentro de uma comunidade (no filme, não vemos uma figura religiosa ou mesmo um padre). Entretanto, o uso se disseminou, em especial, quando da chegada de europeus no litoral brasileiro (WASSÉN, 1993). Em 1946, o químico pernambucano Gonçalves de Lima descobriu a presença do DMT (N, N-dimetiltriptamina) na planta Jurema, possuidora de um alcaloide chamado de 'nigerina'. Sua utilização está inserida em uma ampla tradição de consumo de plantas psicoativas. A Jurema e a Ayahuasca compartilham da mesma homologia química, pois ambas contêm o DMT (CARNEIRO, 2004).
Após o embate entre bacurauenses [sic] e inimigos (não falarei deles para não dar um spoiler!), tem-se a última hipérbole do filme. Não me causaria estranheza se os inimigos fossem devorados pelos habitantes em um ritual de antropofagia, muito comum entre os Caetés, também conhecidos no Nordeste por "papa-bispos".
Por fim, sem detalhar a ação dos inimigos e sua estratégia, a conivência do prefeito e o final apoteótico do conflito, eu consideraria o roteiro muito mais rico, historicamente, se um ator holandês tivesse sido escalado para o longa, ainda que, do ponto de vista histórico, um alemão judeu, Jacob Rabbi, tenha vivido com os Cariris no Nordeste, no período de conquista de território brasileiro pelos Países Baixos (aludi ao ator alemão Udo Kier, que atua no filme).
"Bacurau" é uma obra de arte e merece ser conferida por brasileiros preocupados com a crise econômica e moral que assola o nosso país, com a precariedade da arte e da cultura brasileiras e com o futuro da Amazônia! Vida longa a "Bacurau"! Pela democratização do cinema no Brasil!
"Bacurau" é uma obra de arte e merece ser conferida por brasileiros preocupados com a crise econômica e moral que assola o nosso país, com a precariedade da arte e da cultura brasileiras e com o futuro da Amazônia! Vida longa a "Bacurau"! Pela democratização do cinema no Brasil!
Referências:
CARNEIRO, H. As plantas sagradas na história da América. Varia Historia, Belo Horizonte, n. 32, 2004.
WASSEN, S. H. Considerações sobre algumas drogas indígenas, em especial, o rapé e a parafernália pertinente. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, n. 3, 1993.