Fonte: Google
Primeira
parte: sobre “A amiga Genial” (vol. I)
Terminei de ler a “série
napolitana”, de Elena Ferrante. Eu imaginei que pararia no primeiro
volume, mas não foi o que ocorreu. A tetralogia inicia-se com A
amiga genial, publicada
na Itália em 2011; a série apareceu entre 2011 e 2014 na Europa.
Não se sabe quem é Elena Ferrante. Há anos, o pseudônimo encobre
uma personalidade cuidadosa, que preza a segurança e o anonimato. Os
quatro romances foram publicados no Brasil pela Editora Biblioteca
Azul, um selo da Editora Globo, a partir de 2015, com a eficiente
tradução de Maurício Santana Dias.
Levei 29 dias para ler os
quatro volumes, o primeiro em papel, os outros três em e-book.
Terminei a leitura de mais de 1200 páginas exatamente no dia 25 de
abril, uma data muito emblemática para os italianos, o Dia da
Libertação, que celebra o término do fascismo de Mussolini e da
ocupação nazista na Segunda Grande Guerra.
A partir disso, iniciarei minhas
reflexões e impressões acerca da série, considerando,
inicialmente, alguns elementos políticos e, em um segundo momento, a
intertextualidade presente na obra e as ressonâncias que ecoam ao
fundo, em meu ponto de vista bem particular.
Para
uma maior compreensão do que segue, Raffaela Cerullo é chamada de
Lina por todos e de 'Lila' apenas por Elena Greco (Lenuccia ou Lenu).
Para quem não leu os quatro romances, já aviso que haverá spoilers
pelo caminho.
Prólogo
–
Quando se ouve falar em Nápoles, a maior parte das pessoas tem como
referência a gastronomia e a lembrança da famosa pizza napolitana.
Sou cidadã italiana e já passei uma semana inteira em Nápoles, em
janeiro de 2017. Estive no maravilhoso Museu Arqueológico
napolitano; depois, visitei as ruínas de Pompeia. Viajei até
Salerno, a parte final da costa amalfitana, e também fui conhecer os
templos greco-romanos de Pesto, tão deliciosamente comentados por
Goethe, em sua “Viagem à Itália”. Todavia, senti-me insegura em
Nápoles, viajando sozinha. Achei a cidade suja e muito barulhenta,
ainda que sua riqueza artístico-cultural tenha me arrebatado. Mesmo
com todos os cuidados tomados, fui assaltada por um jovem africano na
Praça Garibaldi. Tive um significativo prejuízo, mudei de hotel e
passei um dia abalada. Fiz um esforço enorme para racionalizar o meu
revés e segui viagem – sem celular. Eu vinha acompanhando a RAE, todas as noites no hotel, e soube que mais barcos
haviam atracado no Porto de Nápoles e que dezenas de africanos
haviam chegado à cidade (da Eritreia, de Gana e da Gâmbia). Houve
uma onda de frio justamente naquela semana e a Diocese tentava
aplacar o frio dessa população, angariando fundos para agasalhos e
alimentação. Os africanos estavam todos perfilados na rua, no chão,
que margeia a Praça Garibaldi, a uns 200 metros da entrada principal
da estação de trem, da Napoli Centrale, vendendo produtos chineses.
Exatamente ao meio-dia de um domingo, resolvi abandonar o hotel para
o qual eu já havia pago todas as diárias e me trasladar para um
outro, em uma região mais segura. Fui abordada por um africano de
uns dois metros de altura. Ele puxou a minha mochila de minhas costas
com muita força. Quase caí. Segurei a mala de viagem em um rápido
impulso. Daí, a mochila se abriu e ele retirou, com sua enorme mão,
tudo o que conseguiu carregar. Virei-me para trás e o vi correndo.
Ninguém fez nada. Outros turistas passavam pelo trecho, rumo à
estação. Fiquei muito chateada! Sem o celular - todas as minhas
fotos se perderam -, segui viagem para a Grécia sem poder
documentá-la. Esses africanos tinham sido aliciados pela máfia
local.
Contexto
político-cultural dos romances
– Todas as informações que possuo foram garimpadas de um livro
fantástico, o Gomorra,
que retrata as máfias italianas. Foi publicado há mais de 10 anos
na Itália pelo jornalista Roberto Saviano. Desde lá, ele vive sob
escolta policial. Aqui no Brasil, faz dez anos que a Bertrand Brasil
o editou.
No dia 25 de abril, li na
imprensa italiana que o líder ultradireitista Matteo Salvini,
Ministro do Interior do atual governo, negou-se a participar das
comemorações do Dia da Libertação, ao visitar a cidade de
Corleone. Salvini comentou à imprensa que, para ele, a data não
passa de uma disputa clássica entre fascistas e comunistas. Silvio
Berlusconi, que ocupou o cargo de Primeiro Ministro da Itália por
nove anos no total, já questionava essa efeméride em sua época.
Esse dérbi entre duas facções políticas assombra os quatro
romances de Elena Ferrante. Ora alguns personagens são perseguidos
pelos fascistas, ora outros se rendem ao apelo comunista e aos
embates do proletariado napolitano.
No percurso da infância
até a velhice dos personagens, levando em conta os mais militantes, não constatei referência alguma ao 25 de Abril nas páginas
de Ferrante.
O que me deixou mais
intrigada foi o fato de que os personagens principais, e suas
respectivas famílias, não frequentam a igreja aos domingos (nos
quatro romances). Não há menção à missa dominical tampouco às
práticas católicas como a catequese, a primeira comunhão, a crisma
e as confissões periódicas. A autora (ou autor?) da tetralogia
certamente é agnóstica ou ateia. Entretanto, não considerar o
exercício do catolicismo entre napolitanos da classe operária - na
infância de Lenu e de Lila, as protagonistas -, parece-me um problema
de verossimilhança. Procurei textos de resenhistas e de comentadores
sobre a obra de Ferrante, mas não encontrei nada aprofundado sobre
esse tema. A missa aos domingos, para os italianos, é uma prática
profundamente arraigada à sua cultura religiosa e é a base de sua
educação familiar. Não consigo imaginar a família de um humilde
sapateiro (família de Lila) e a de um contínuo (família de Lenu)
não frequentarem a igreja, ao menos, aos domingos, vestindo seus
melhores trajes. É assim que percebi a obra como um todo, sem
referências ao papado, sem beatices, sem dogmas religiosos! O filho que Lila tem com Stefano chama-se Gennaro (depois, apelidado
de Rinu), nome do santo padroeiro de Nápoles. Vai entender!
Com relação à máfia
napolitana, muito eu teria a comentar, mas tentarei não ser prolixa.
A Camorra, como é conhecida a máfia de Nápoles, atua em toda a
região da Campânia, mas hoje tem fortes laços com o crime
internacional. É denominada, atualmente, de “sistema”, formada
de um aglomerado de famílias, os clãs, com, aproximadamente, 250
gangues operando somente nessa cidade. A Camorra teria surgido em
Nápoles nos séculos XVI e XVII. O porto napolitano recebe toneladas
de produtos legais e ilegais diariamente, que são distribuídos por
todo o país. O fato de ser uma cidade portuária foi decisivo para a
implementação do crime organizado, desde a falsificação de
artigos de luxo de grifes internacionais até a indústria de vários
tipos de resíduos. Em dialeto napolitano, “ca + morra” significa
“com a morra”, ou seja, com o jogo, nome de um jogo muito popular
na Itália, que é a morra. O sentido seria de a organização
criminosa atuar 'à maneira da morra'. Esse jogo pode se tornar
violento e machucar os dedos dos jogadores no embate. Foi levado do
Vêneto para o Brasil pelos imigrantes.
Nos romances de Ferrante, da
série napolitana, a família Solara, que atua na periferia - na qual
Lenu, Lila e demais personagens vivem -, envolve-se com a corrupção,
com o crime, com a lavagem de dinheiro e, mais adiante, com o
tráfico de drogas. A violência é a tessitura da narrativa, desde a
primeira infância até a velhice dos personagens, como o Vesúvio é
o pano de fundo das mazelas vividas pelas famílias.
Quanto
ao patrimônio histórico-artístico de Nápoles, não há menção
alguma nos quatro livros às ruínas das cidades romanas, que
ressurgiram das cinzas do Vesúvio. Somente no quarto livro, que será
comentado por mim, na quarta parte desta resenha, Lila retoma a
leitura e passa a frequentar o arquivo histórico e a biblioteca,
esmerando-se no estudo da arquitetura e da arte napolitanas. A partir
de suas manifestações, é possível traçar um roteiro, ir a
Nápoles e fazer “o percurso de Elena Ferrante”.
Contexto
mítico: Eneias e Dido – Dido
significa, em fenício, “a errante” (é o leitmotiv
de Eneida,
de Virgílio). Esse é o mito que hidrata o primeiro livro de
Ferrante e é o tema de uma das redações que Lenu escreve
em sala de aula. Eneias é filho de Anquises e Afrodite. É um
príncipe troiano mencionado na Ilíada,
de Homero. A tradição concorda com o fato de que Eneias foi poupado
pelos deuses na Guerra de Troia, de lá partiu para a região do
Láscio na qual se estabeleceu, com a missão divina de fundar Roma.
Casou-se com Lavínia e teve um filho chamado de Ascânio ou Lulo.
Rômulo, mais tarde, descenderia dessa linhagem que, séculos depois,
fundaria Roma. Antes de chegar ao Láscio, porém, Eneias atraca em
Cartago (na Tunísia atual), cidade comandada pela Rainha Dido, com quem tem
uma aventura amorosa. Virgílio narra as errâncias de Eneias, aos moldes de Homero, que
decide retomar o plano inicial delegado por um deus, logo após chegar a Cartago. Vai embora não conseguindo se desvencilhar de seu destino. Dido, que
era viúva e foragida de sua cidade natal, desesperadamente apaixonada por Eneias, suicida-se.
No
primeiro volume, A
amiga genial,
no capítulo 25, Lenu escreve uma redação intitulada “As várias
fases do drama de Dido”, a rainha cartaginesa de Eneida.
Esse texto cai nas graças de sua professora, que faz com que ele
circule entre os docentes da escola, até que chega às mãos da
Prof. Galiani, que era a responsável pelas aulas de Grego e Latim na
instituição. Essa era a professora de Nino Serratore, o garoto com
quem Lenu sonhava. O argumento da redação foi elogiado por Galiani,
“uma cidade sem amor”, que poderia ser equiparada à própria
Itália daqueles idos sob o fascismo de Mussolini. Galiani ficou,
então, impressionada com a maestria da menina. Era tudo o que Lenu precisava, contando que os elogios chegassem aos ouvidos de Nino.
Nesse
momento da narrativa, Lenu colhe seus louros; todavia, Lina para de
ler e deixa de frequentar a biblioteca, alegando que os livros fazem
“mal à sua cabeça”. Possivelmente, alguns elementos da
construção da personagem de Dido, no poema virgiliano, serviram de
inspiração para as idiossincrasias de Lila. É indubitável que
Elena Ferrante tenha bons conhecimentos da área de estudos
clássicos, na medida em que nuanças míticas floreiam sua
tetralogia. A inteligência de Lila (sua méthis)
nos remete ao uso da mesma astúcia por Dido, em Eneida.
Dido suicida-se ao saber que Eneias não ficará em Cartago. Não
obstante o influxo trágico de sua vida, Lila não se suicida e Lenu,
no prólogo do primeiro volume, sob o efeito da notícia do
desaparecimento de Lila, já com 60 anos, assevera que a amiga jamais
comentara a possibilidade de acabar com sua própria vida. O drama da
trajetória de Dido e Lila enseja marcas intertextuais como: o
caráter hostil das heroínas em relação ao irmão; a discórdia e
a ganância dos familiares; o fato de que Eneias abandona Dido e
Nino, Lila; a beleza e a sensualidade de ambas; e a transgressão da
imagem clássica feminina, de fraca e passiva, passando à atuante e
à líder local.
Não
tive mais dúvidas, ao terminar a leitura de A
amiga genial,
que estava a me deliciar com uma tragédia moderna, que ressignifica
o mito de Dido e amplifica a luz sobre o poema de Virgílio.
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