segunda-feira, 17 de agosto de 2020

ESTÉTICA E SOCIEDADE DE CONSUMO: AS 'ILUSÕES PERDIDAS' DE BALZAC





                      OS 170 ANOS DE MORTE DE
                            HONORÉ DE BALZAC

                En l'honneur d'un grand artiste, Balzac



                                     Para Marcelo R. Lucas, com admiração e afeto


    Reluto ao escrever que Balzac (1799-1850) foi um romancista e jornalista "francês". Ele é do mundo, meu e teu também. Como o é Machado de Assis, brasileiro e patrimônio pertencente à humanidade.  Um dos autores modernos que mais amo é Honoré, se me permitem a intimidade, na medida em que o li bastante ao longo de minha vida. A universalidade de sua narrativa realista irrompe fronteiras e confere-lhe um lugar em um púlpito, iluminado e inatacável, dentre as celebridades da literatura moderna.
      Balzac, juntamente com Stendhal (batizado com o nome de Marie-Henry Beyle, 1783-1842), é um dos pilares do romance moderno. Com a queda do Antigo Regime, na França, a aristocracia sobreviveu alinhada à lógica da burguesia ascendente. O próprio Balzac era um aristocrata conservador, que tinha uma profunda consciência das forças conflitivas que operavam na sociedade francesa do século XIX.
      Uma das "ilusões perdidas" - reportando-me a um de seus romances no âmbito do conjunto de sua obra monumental intitulada "A comédia humana" -, a que faz referência no título do livro, é o desvanecimento do valor estético da obra artística, em detrimento do valor econômico.
       O inventário que Balzac constrói da intrincada rede dos costumes do universo francês, seja da "fauna e da flora parisienses", como da tipologia provinciana, alçaram-no à condição de analista, voltando seu olhar arguto às contradições da classe burguesa e de todos os estratos sociais em que vidas humanas se manifestem e se refestelem, em um período que vai, aproximadamente, de 1829 a  1847, perfazendo 88 títulos de romances, novelas e contos.    
    Escrevia com voracidade e rapidez, muitas vezes sem um maior apuro formal, o que lhe rendia críticas de parte de seus contemporâneos, especialmente do escritor Gustave Flaubert (autor de "Madame Bovary", publicação de 1856, fortemente influenciada pela obra do próprio Balzac).
    Balzac fazia dinheiro com sua obra e ele compreendia que a regularidade nas trocas, chancelada por uma economia monetária, configurava e garantia a manutenção da sociedade burguesa, cujas relações eram mediadas pelo dinheiro. Anotava com pressa - e levantava uma fortuna!
    Recomendo a leitura de um de seus romances, "O pai Goriot", o que mais aprecio, para quem nunca se iniciou no universo balzaquiano. Abaixo, segue um aperitivo da narrativa dos costumes de Balzac, extraído desse livro:

     [...] "No dia seguinte, Rastignac vestiu-se com toda a elegância e foi, por volta das três horas da tarde, à casa da Sra. de Restaud (...). Chegou afinal à Rue du Helder e perguntou pela condessa de Restaud. Com a raiva fria de um homem seguro de triunfar um dia, recebeu o olhar de desprezo das pessoas que o tinham visto atravessar o pátio a pé, sem terem ouvido o ruído de um veículo na porta. Tal olhar magoou-o ainda mais porque já compreendera sua inferioridade ao entrar naquele pátio, no qual bufava um belo cavalo ricamente atrelado a um desses cabriolés engalanados, que ostentam o luxo de uma existência dissipadora e subentendem o hábito de todas as felicidades parisienses". [...]


        É possível, pois, compreender a admiração que Marx e Engels nutriam pela obra balzaquiana. Em uma carta, já muitas vezes resgatada pela crítica da literatura, Engels comenta que Balzac descreveu, quase que ano após ano, de 1816 a 1848, a ascensão progressiva da burguesia sobre a sociedade de nobres, que sucumbia, gradualmente, ante a invasão dos "vulgares arrivistas endinheirados" (excerto da carta de Engels a Margaret Harkness, abril de 1888).
       Marx, por outro lado, apreciava um dos contos de Balzac, "A obra-prima ignorada", que perscruta a alma de um artista em sua obcecada busca pela perfeição formal (em um pano de fundo no qual se brandia contra a arte pela arte), alegoria com a qual, suponho, o escritor alemão se identificava 
    Segundo György Lukács (1885-1971), um marxista e crítico literário húngaro (considerado o Marx da Estética), a arte realista, utilizando a obra de Balzac como paradigma, é a que engendra uma práxis social capaz de reabilitar a aura da obra de arte, sob os auspícios de uma sociedade fetichizada e assentada em forças reificadoras. A proeminência da narrativa realista sobre outras existentes é sua tese abordada no livro de ensaios "Marxismo e teoria da literatura", um enfoque materialista da História da Literatura Moderna.
     Dissecando o conto de Balzac, que Marx admirava, Lukács desvela, analiticamente, a busca do artista pela Beleza e pela perfeição, além de sua luta contra a decadência da sociedade burguesa e o consequente arrefecimento do fazer estético-artístico. O enaltecimento do Realismo, enquanto única narrativa possível, promove o gênero literário a um método revolucionário, abrilhantando Balzac, em seus 170 anos de morte, em 18 de agosto, e atualizando sua "comédia humana", que pode nos dar subsídios para avaliar a tragédia humana, que assola a humanidade neste sagrado ano de 2020.

                           Merci beaucoup, Honoré!

        
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:

BALZAC. O pai Goriot (1835) e o conto "A obra-prima ignorada" (1831)
LUKÁCS. O romance histórico.
LUKÁCS. Ensaios sobre a literatura.
MARX E ENGELS. Correspondência.

 




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